O objetivo deste artigo é levantar a questão das lembranças espontâneas de vidas passadas em crianças, sob diferentes pontos de vista científicos, com o intuito de fomentar a reflexão do leitor individualmente, do grupo familiar e dos grupos de estudos, adeptos de diferentes escolas: materialistas ou espiritualistas. Cabe a cada um fazer suas próprias considerações e elaborar um conceito a respeito do assunto.
Esta questão tem uma importância muito grande para a Pedagogia Espírita, pois ela toca em vários conceitos e objetos de estudo seus, entre eles, as tendências inatas da criança, o conceito de criança como espírito reencarnante, a interexistencialidade, e a igualdade com singularidade (ver o livro Pedagogia Espírita de Dora Incontri).
Crianças que alegam fragmentos de lembrança de uma vida passada são encontradas em muitos países, notadamente naqueles nos quais a crença na reencarnação é forte: os países hinduístas e budistas do sudeste da Ásia, os povos xiitas do Líbano e Turquia, as tribos da África Ocidental, e as tribos do nordeste da América do Norte. Embora mais raro, relatos têm sido descritos na Europa, EUA e Brasil.
Várias explicações têm sido aventadas com o objetivo de explicar porque as memórias alegadas se desenvolvem, e isto varia desde “um recurso terapêutico” até reencarnação.
Começaremos a nossa discussão com os argumentos da psicologia ortodoxa, que descarta a hipótese da reencarnação. É importante conhecermos seus argumentos.
E. Brody e Erlendur Haraldsson têm levantado algumas hipóteses sobre os fatores psicológicos e psicosociais que podem facilitar o desenvolvimento das experiências de vidas prévias espontâneas (EVPE) através da fantasia ou como uma compensação. Isolamento social, alta sugestibilidade (em culturas com uma larga crença na reencarnação), uma vida rica em fantasia, tendências dissociativas, necessidade de atenção e problemas relacionados com os pais podem fazer uma criança mais comumente alegar memórias de uma vida prévia.
Segundo Haraldsson, relativamente pouca atenção tem sido dada aos fatores psicológicos no desenvolvimento dos casos. A maioria das investigações das EVPE tem centrado sua atenção na tentativa de verificar as afirmações que a criança faz sobre a sua vida prévia. Esta tem sido a praxe na pesquisa de Ian Stevenson. (Ver referências no final do texto).
Haraldsson entrevistou trinta crianças libanesas pertencentes ao grupo étnico druso (19 garotos e 11 meninas), que tinham persistentemente falado de memórias de uma vida passada e 30 crianças que serviram de grupo controle, usando testes relevantes e questionários. O grupo alvo obteve altos escores de devaneios, necessidade de atenção e dissociação, mas não houve isolamento social e sugestibilidade. Os níveis de dissociação foram bem menores do que nos casos de personalidade múltipla. Houve alguma evidência de sintomas-like da desordem do estresse pós-traumático. Oitenta por cento das crianças falaram sobre as circunstâncias das memórias da vida passada como causadas por uma morte violenta (na sua maioria acidentes, mas também assassinatos).
Haraldsson elaborou algumas das características do perfil psicológico dessas crianças (Líbano e Sri Lanka), entre elas citamos:
• Mais devaneios
• Possuem um vocabulário maior
• Obtêm melhores escores nos testes breves de QI
• Melhor memória recente e desempenho escolar
• Alto escore no Child Behaviour Checklist (um instrumento usado largamente para medir problemas comportamentais)
• São mais argumentativas
• Mais nervosas
• Altamente combativas
• Perfeccionistas
• Tímidas e medrosas
• Mais preocupadas em estarem limpas, asseadas e com tudo em ordem.
• Mais tendências dissociativas
Não mostraram maior tendência:
• À confabulação
• À sugestibilidade
• A um isolamento social.
• A ter uma estrutura familiar diferente
• A apresentarem conflitos na família
•A terem maior necessidade de atenção
• A terem mais distúrbios de relacionamento com os pais.
Além dessas características, as crianças que alegam lembranças de vidas passadas falam sobre essas experiências com a idade entre 2 -5 anos, segundo Antonia Mills e S.J. Lynn, e param de falar sobre estas experiências entre 5 e 7 anos.
As hipóteses das explicações psicológicas podem ser satisfatórias para casos não resolvidos e casos nos quais existe uma pequena correlação entre as afirmações sobre vidas passadas e os fatos de uma pessoa identificada que esteja morta. Mas o que acontece com os casos (muitos numerosos) onde existe um alto grau de correlação e não existe conexão entre a família da criança e a pessoa previamente mencionada?
Para sustentar as explicações psicológicas é preciso assumir que esses casos são devidos ao acaso. Mas qual a probabilidade que isto ocorra? Um em 1 bilhão? E se vários casos se repetem, já não teríamos mais um acaso. Além do mais é racional usar o acaso para explicar uma interação que evidencia uma relação causa-efeito? E como explicar a correlação entre as alegações afirmadas e a presença de deformidades e marcas de nascença e os ferimentos fatais da pessoa morta? Outra argumentação é que essas explicações de maneira alguma excluem a hipótese reencarnacionista, pelo contrário a reforçam, pois se a personalidade prévia sofreu um trauma severo (morte violenta), nada mais natural que ela apresente na nova personalidade, achados psicológicos que corroborem essa alegação.
No próximo numero, abordaremos as pesquisas realizadas pelo Prof. Dr. Ian Stevensson da Universidade da Virginia nos EUA sobre crianças que alegam lembranças de vidas passadas e a presença de marcas de nascença e deformidades e discutiremos as propostas da Pedagogia Espírita na abordagem dessas crianças.
Relato de caso-1
Um guerreiro reencarnado
Quando Nazih era muito criança, fazia afirmações específicas sobre sua vida passada para vários membros de sua família. Ele dizia: ‘Eu não sou pequeno, sou grande. Tenho duas pistolas. Carrego duas granadas de mão. Eu sou ‘‘qabadai’’ (uma pessoa forte e corajosa). Eu tenho muitas armas. Meus filhos são jovens e eu preciso vê-los.’ Para sua mãe, ele disse: ‘Minha esposa tem olhos mais bonitos do que os seus.’ Além disso , ele falava de memórias onde ele teria tido um amigo mudo, que vivia na vila de Quaberchamoun, descrevendo uma casa que possuía, e ter sido baleado por pessoas armadas. Os pais de Nazih não o encorajavam a falar sobre sua vida passada. Com a idade de sete anos eles finalmente concordaram com seus pedidos persistentes e o levaram a Quaberchamoun. Ele os conduziu para uma rua onde eles encontraram uma viúva e seus filhos. A vida do seu falecido marido, Fuad Khaddage correspondia às afirmações de Nazih. De acordo com a viúva e o irmão de Fuad, Nazih respondeu corretamente às perguntas feitas a respeito de Fuad, as quais poucas pessoas ou somente eles sabiam, e ele reconheceu alguns dos pertences de Fuad. Nazih também os fez relembrar de eventos que eles experienciaram juntos, tais como uma coleção de armas de mão incomuns que Fuad tinha dado para seu irmão. (Haraldsson &Abu-Izzeddin, 2002).
Relato de caso-2
Um trauma de morte violenta
Nadine falou de uma vida como uma jovem mulher casada, dando seu nome e do seu marido, que a havia estrangulado num iate e a jogado no mar. Ela mostrou à sua mãe como seu marido havia feito isto colocando suas mãos em volta de sua garganta. Então sua garganta ficava às vezes vermelha e inchada. Nadine falou sobre sua filha Reema, e quanto ela a amava. Algumas vezes ela queria um travesseiro e enrolava-o com uma colcha quando eles saíam para viajar.
Ela colocava então no assento traseiro e dizia a mãe: Esta é a maneira como eu costumava colocar minha filha’. Houve mais afirmações. De acordo com o pai de Nadine, ela estava com aproximadamente um ano e meio quando a família pegou um barco pequeno para uma travessia até a ilha. No barco Nadine começou a tremer com medo. Quando seu pai tentou colocá-la na água para ensiná-la a nadar ela estava extremamente assustada, tremendo e balançando seus braços com grande medo. Quando eles voltaram para casa, ela disse para eles: ‘Eles me mataram no mar.’ Após esta viagem, ela começou a falar sobre sua filha Reema e sua família na vida passada. A família de Nadine obteve a informação de um homem que havia afogado sua jovem esposa, mas a maioria das afirmações de Nadine não se encaixou na história da vida dessa mulher. (Haraldsson &Abu-Izzeddin, in press).
Entenda aqui alguns termos técnicos:
Devaneios – sonhar acordado, tomar ilusões por realidade.
Dissociação – estado patológico de distanciamento da realidade.
Sugestibilidade – ser facilmente induzível a alguma coisa.
Personalidade múltipla – doença psiquiátrica em que o paciente acredita ser várias pessoas.
Sintomas-like – sintomas parecidos com.
Referências:
Brody, E. B. Review of Cases of the Reincarnation Type, Vol. II. Ten cases in Sri Lanka by Ian Stevenson. Journal of Nervous and Mental Disease, 1979; 167: 769–774.
Haraldsson, E. Psychological comparison between ordinary children and those who claim previous-life memories. Journal of Scientific Exploration. 1997; 11: 323–335.
Haraldsson, E. Children who speak of past-life experiences: Is there a psychological explanation? Psychology and Psychotherapy: Theory, Research and Practice. 2003; 76:55–67.
Incontri, D. Pedagogia Espírita. Um projeto brasileiro e suas raízes. Manifesto da Pedagogia Espírita 2004: 241-265. Editora Comenius.
Mills, A., & Lynn, S. J. Past-life experiences. In E. Carden˜ a, S. J. Lynn, &S. Krippner (Eds.),Varieties of anomalous experience.Washington, DC: American Psychological Association. 2000; 283–313
Stevenson, I. Reincarnation and biology. A contribution to the etiology of birthmarks and birth defects. Volumes 1 and 2. Westport, CT: Praeger. 1997a.
Stevenson, I. Where reincarnation and biology intersect. Westport, CT: Praeger.1997b.
Stevenson, I. Children who remember previous lives. A question of reincarnation. Revised edition. Jefferson, NC: McFarland. 2001
Tucker, Jim. Vida antes da Vida- Uma pesquisa científica das lembranças que as crianças têm de vidas passadas. Ed. Pensamento. São Paulo.2007.
Franklin
Fonte: Associação Brasileira de Pedagogia Espírita