Com este livro, a 18 de abril de 1857, raiou para o mundo a era espírita. Nele se cumpria a promessa evangélica do Consolador, do Paracleto ou Espírito da Verdade. Dizer isso equivale a afirmar que “O Livro dos Espíritos”, é o código de uma nova fase da evolução humana. E é exatamente essa a sua posição na história do pensamento. Este não é um livro comum, que se pode ler de um dia para o outro e depois esquecer num num canto da estante. Nosso dever é estudá-lo e meditá-lo, lendo-o e relendo-o constantemente.
Sobre este livro se ergue todo um edifício: o da Doutrina Espírita. Ele é a pedra fundamental do Espiritismo, o seu marco inicial. O Espiritismo surgiu com ele e com ele se propagou, com ele se impôs e consolidou no mundo. Antes deste livro não havia Espiritismo, e nem mesmo esta palavra existia. Falava-se em Espiritualismo e Neo-Espiritualismo, de maneira geral, vaga e nebulosa. Os fatos espíritas, que sempre existiram, eram interpretados das mais diversas maneiras. Mas, depois que Allan Kardec o lançou à publicidade, “contendo os princípios da Doutrina Espírita”, uma nova luz brilhou nos horizontes mentais do mundo.
Há uma seqüência histórica que não podemos esquecer, ao tomar este livro nas mãos. Quando o mundo se preparava para sair do caos das civilizações primitivas, apareceu Moisés, como o condutor de um povo destinado a traçar as linhas de um novo mundo: e de suas mãos surgiu a Bíblia. Não foi Moisés quem a escreveu, mas foi ele o motivo central dessa primeira codificação do novo cliclo de revelações: o critão. Mais tarde, quando a influência bíblica já havia modelado um povo, e quando este povo já se dispersava por todo o mundo gentio, espalhando a nova lei, apareceu Jesus: e das suas palavras, recolhidas pelos discípulos, surgiu o Evangelho.
A Bíblia é a codificação da primeira revelação cristã, o código hebraico em que se fundiram os princípios sagrados e as grandes lendas religiosas dos povos antigos. A grande síntese dos esforços da antigüidade em direção ao espírito. Não é de admirar que se apresente, muitas vezes, assustadora e contraditória, para o homem moderno. O Evangelho é a codificação da segunda revelação cristã, a que brilha no centro da tríade dessas revelações, tendo na figura do Cristo, o sol que ilumina as duas outras, que lança a sua luz sobre o passado e o futuro, estabelecendo entre ambos a conexão necessária. Mas, assim como, na Bíblia, já se anunciava o Evangelho, também neste aparecia a predição de um novo código, o do Espírito da Verdade, como se vê em João, XVI. E o novo código surgiu pelas mãos de Allan Kardec, sob a orientação do Espírito da Verdade, no momento exato em que o mundo se preparava para entrar numa fase superior do seu desenvolvimento.
Hegel, em suas lições de estética, mostra-nos as criações monstruosas da arte oriental, – figuras gigantescas, de duas cabeças e muitos braços e pernas, e outras formas diversas, – como a primeira tentativa do Belo para dominar a matéria e conseguir exprimir-se através dela. A matéria grosseira resiste à força do ideal, desfigurando-o nas suas representações. Mas acaba sendo dominada, e então aparecem no mundo as formas equilibradas e harmoniosas da arte clássica. Atingido, porém, o máximo de equilíbrio possível, o Belo mesmo rompe esse equilíbrio, nas formas românticas e modernas da arte, procurando superar o seu instrumento material, para melhor e mais livremente se exprimir. Essa grandiosa teoria hegeliana nos parece perfeitamente aplicável ao processo das revelações cristãs: das formas incongruentes e aterradoras da Bíblia, passamos ao equilíbrio clássico do Evangelho, e deste à libertação espiritual de “O Livro dos Espíritos”.
Cada fase da evolução humana se encerra com uma síntese conceptual de todas as suas realizações. A Bíblia é a síntese da antigüidade, como o Evangelho é a síntese do mundo greco-romano-judáico, e o “O Livro dos Espíritos” a do mundo moderno. Mas, cada síntese não traz em si tão somente os resultados da evolução realizada, porque encerra também os germens do futuro. E na síntese evangélica temos de considerar, sobretudo, a presença do Messias, como uma intervenção direta do Alto para a reorientação do pensamento terreno. É graças a essa intervenção que os princípios evangélicos passam diretamente, sem necessidade de readaptações ou modificações, em sua pureza primitiva, para as páginas deste livro, como as vigas mestras da edificação da nova era.
Capítulo da introdução redigida por Herculano Pires para o “O Livro dos Espíritos”, por ocasião da edição especial da LAKE, comemorativa do centenário da obra, em 18 de abril de 1957.