Kim Noble, uma artista plástica inglesa, que carrega 20 personalidades diferentes em seu “cérebro”, demonstra por que a desordem dissociativa de identidade (DDI) confunde e fascina médicos e psicólogos há vários anos. Para os estudiosos, o distúrbio das múltiplas personalidades (DMP) (1) é um mecanismo de defesa por meio do qual uma pessoa cria personalidades alternativas para enfrentar situações que, originalmente, não seriam suportadas. Existem estudos de pessoas que apresentam duas, e até centenas de personalidades diferentes. (2) Kim foi internada, várias vezes, em hospitais psiquiátricos, experimentando diversos medicamentos e, em muitas ocasiões, foi diagnosticada como esquizofrênica (3) razão pela qual era tratada com antipsicóticos. Há quatro anos, uma assistente social sugeriu a Kim que começasse a pintar. Foi como se uma comporta tivesse sido aberta em seu cérebro.
Ela passou a conhecer seus vinte álteres (4) pelo estilo artístico de cada um. Noble sofre “apagões” de memória, durante três ou quatro horas, todos os dias, e outra persona assume o comando de seu corpo. Depois de um transe (“apagão”), Kim vê uma pintura nova ou alterações em um quadro que já havia começado a pintar e é capaz de dizer quem esteve por lá. Ao ser perguntada sobre Bonnie, um dos álteres, responde que está com saudades porque faz tempo que ela não “aparece”. Porém, às vezes, algum dos álteres causa incômodos. “Dentro de Kim” há Judy, uma típica adolescente rebelde de 15 anos. Além das pinturas, Kim consegue transmitir mensagens por meio de bilhetes e recados verbais.
O Transtorno dissociativo de identidade é uma condição mental onde um único indivíduo demonstra características de duas ou mais personalidades ou identidades distintas, cada uma com sua maneira de perceber e interagir com o meio. O distúrbio é um campo de pesquisa cheio de controvérsias instigantes para a compreensão do complexo funcionamento da mente humana. O fenômeno, ainda, é mal compreendido pela ciência. Especialistas afirmam que o distúrbio é, geralmente, desencadeado por um trauma recorrente ocorrido na infância, principalmente o abuso sexual. Curioso é que muitos especialistas acreditam que a DDI não existe, pois que a literatura médica sobre o tema é pouco confiável. Há médicos e psicólogos que acreditam que o distúrbio não é genuíno – não passaria de fingimento de alguém com uma memória muito boa. Outros crêem que a DDI é, na verdade, um estado semelhante ao hipnótico, no qual as pessoas se comportam da maneira como acham que deveriam se comportar.
Especialistas analisam o distúrbio das múltiplas personalidades do ponto de vista biológico. Para tais profissionais, o stress traumático afeta a química do cérebro. Apesar de ser classificado como “transtorno mental”, a condição não tem relação com a esquizofrenia, ao contrário do que acredita a maioria das pessoas. A grande maioria dos estudiosos não explica a epilepsia, as desordens genéticas e os desequilíbrios neuroquímicos. Outros apelam para a idéia de possessão demoníaca [num passado, não tão remoto, tal justificativa seria perfeitamente razoável]. Nessa época, teólogos elaboravam “rituais sociais”, apresentando bases que pareciam validar a sugestão da possessão demoníaca. No contexto sócio-cognitivo, essas crenças eram tomadas por “corretas” e reforçadas pela tradição.
O tema se torna ainda mais relevante no Brasil, onde possuímos diversas religiões que enfatizam os transes: espíritas, afro-brasileiros, evangélicos pentecostais e católicos carismáticos. Além do valor cognitivo de se estudar e compreender melhor essa milenar vivência dissociativa, deve-se ressaltar as implicações clínicas. Faz-se mister a realização de um adequado diagnóstico diferencial dessas vivências consideradas mediúnicas, buscando distinguir quando se trata de uma vivência religiosa não-patológica das situações em que são manifestações de psicopatologia dissociativa ou psicótica. O Brasil, do começo do século, assistiu a inúmeras interpretações da mediunidade, também relacionadas à dissociação, porém, descontextualizando tais experiências de seus aspectos culturais. A mediunidade foi descrita, quase invariavelmente, como sinal de psicopatologia. As análises feitas na mediunidade, apenas raramente, foram realizadas por pesquisadores com formação psicológica.
Há tendência, antiga e atual, em interpretar o fenômeno da mediunidade como um estado dissociativo. No contexto da mediunidade, discutiram-se as diferenças conceituais entre “transe”, “possessão” e “transe de possessão”, sustentando que a “possessão” não envolve um “transe” ou outra alteração de consciência, mas uma doença pretensamente causada pela introjeção de espíritos malévolos na mente e no corpo de alguém. No “transe de possessão”, haveria uma alteração de consciência induzida por espíritos, durante o qual o comportamento e a fala das entidades possuidoras poderiam ser observados. Algumas vezes, as entidades seriam benevolentes (como no caso dos médiuns que “incorporam” seus “espíritos-guias”) e, em outras vezes, inoportunas (como no caso de espíritos malévolos ou entidades nocivas que falam e agem pelo corpo dos médiuns). O pesquisador Bourguignon utilizou o termo “transe” para se referir aos estados alterados de consciência induzidos que não estão relacionados às idéias culturais de possessão. (5)
Façamos algumas análises do ponto de vista psicológico do fenômeno “mediunidade” que, completas ou não, constituem importantes contribuições e às quais devemos fazer referência. A pesquisa científica dos médiuns e da mediunidade teve seu início organizado em 1882, com a fundação da Society for Psychical Research, em Londres. Dentre os membros da Society figuravam personalidades que seriam conhecidas como as fundadoras da Psicologia moderna, como Sigmund Freud, Carl Gustav Jung e William James. As pesquisas realizadas pelos membros da Society estiveram menos ligadas às análises psicológicas dos médiuns do que à tentativa de constatação dos supostos feitos mediúnicos, como a capacidade de provocar alterações físicas no ambiente (deslocamento de objetos) e a capacidade de se comunicar com os espíritos de pessoas falecidas.
Apesar de serem criticados por provocarem seus efeitos por meio de fraude, os médiuns também mereceram análises menos desabonadoras. Nesse particular, a maioria dos membros da Society concordaria, com William James: “O que quero atestar imediatamente a seguir é a presença – no meio de todos os ingredientes da farsa – de um conhecimento verdadeiramente supranormal. Entendo tal conhecimento, sendo aquele cuja origem não possa ser atribuída às fontes ordinárias de informação – ou seja, os sentidos do sujeito. (6)
Evoco aqui Theodore Flournoy, professor de Psicologia na Universidade de Genebra, que realizou as primeiras análises psicológicas dos médiuns. Flournoy se preocupou, por exemplo, em inquirir a respeito da influência de condições fisiológicas e mentais sobre a mediunidade e, inversamente, a influência da mediunidade na saúde orgânica e mental dos médiuns; sob que circunstâncias (se espontaneamente, se durante uma sessão espírita…) os médiuns descobriram sua mediunidade; a importância da mediunidade para a vida mental, religiosa e moral dos médiuns; e as origens familiares da mediunidade. (7)
Apesar de tamanho impacto exercido sobre a humanidade, ela tem sido praticamente ignorada pelos pesquisadores da área de saúde mental. Porém, encontramos Pierre Janet, que teve formação em psicologia e psiquiatria, apesar de pouco conhecido atualmente, mas amplamente reconhecido como o fundador das modernas visões sobre dissociação. O estudo da mediunidade e do espiritismo ocupa relevante espaço em sua pesquisa destinada ao estudo das “desagregações psicológicas”, pois buscou perscrutá-las a partir de sujeitos que as apresentavam em seu mais alto grau (médiuns). Apesar de considerar o espiritismo “uma das mais curiosas superstições de nossa época”, afirmou ser este o precursor da psicologia experimental, assim como a astronomia e a química começaram através da astrologia e da alquimia.
Dos estudiosos, citamos, também, William James que, ao lado de Freud, Piaget, Pavlov e Skinner, foi considerado um dos cinco psicólogos mais importantes de todos os tempos. A investigação da mediunidade recebeu especial destaque de James, tendo realizado, por mais de duas décadas, pesquisas com uma das mais renomadas médiuns do século XIX, Leonore Piper. Considerava a possessão mediúnica uma forma natural e especial de personalidade alternativa em pessoas, muitas vezes, sem qualquer outro sinal óbvio de problemas mentais.
Chamamos para dentro do debate Carl Gustav Jung, pois o seu interesse pela mediunidade já se manifestou em sua dissertação, publicada em 1902, para a obtenção do título de médico: “Sobre a Psicologia e a Patologia dos Fenômenos Chamados Ocultos”. Afirmava “com absoluta clareza que em todo movimento espírita havia uma compulsão inconsciente para fazer com que o inconsciente chegasse à consciência”. Aponta duas razões pelas quais “os conteúdos inconscientes se manifestem na forma de personificações (espíritos)”: porque esta sempre foi a forma tradicional de compensação inconsciente e porque é difícil provar, com certeza, que não se trate realmente de espíritos. Por outro lado, também diz ser muito difícil, senão impossível, a prova de que se trate realmente de espíritos.
A rigor, para James e Jung: a mediunidade não é necessariamente patológica; teria origem no inconsciente do médium, mas não foi excluída a possibilidade de uma origem paranormal, inclusive a real comunicação de um espírito desencarnado e ambos reforçam a necessidade de maiores estudos. Porém nestes apontamentos o que é digno de nota é o fato de a mediunidade ter sido objeto de intensas pesquisas que não levaram a uma teoria única e, mesmo assim, os estudos terem sido interrompidos. Num sentido “kuhniano”, não havia, ainda, chegado a um paradigma maduro e aceito, consensualmente, pelo meio científico. Outro aspecto relevante são as declarações dos pesquisadores discutidos, enfatizando a importância que a investigação e o melhor entendimento das vivências, tidas como mediúnicas, têm para a exploração da mente humana.
A mediunidade não é a causa primária dos desequilíbrios orgânicos e psicológicos. Ela desempenha papel essencial no estabelecimento da base experimental da ciência espírita e nas atividades dos centros espíritas. Qualquer pessoa apta a receber ou a transmitir comunicações dos Espíritos é, por isso mesmo, médium, quaisquer que sejam o modo empregado e o grau de desenvolvimento da faculdade, desde a simples influência oculta até a produção dos mais insólitos fenômenos. Têm-se visto pessoas, inteiramente, incrédulas ficarem espantadas de escrever [mediunicamente] a seu mau grado, enquanto que crentes sinceros não o conseguem, o que prova que essa faculdade se prende a uma disposição orgânica. A mediunidade é a faculdade especial que certas pessoas possuem para servir de intermediárias entre os Espíritos e os homens. Ela tem origem orgânica, e independe da condição moral do médium; de suas crenças; e/ou de seu desenvolvimento intelectual. Quando existe o princípio, o gérmen de uma faculdade, esta se manifesta sempre por sinais inequívocos.
Jorge Hessen ]
Jornalista, professor e historiador (licenciado pela Unb) articulista e palestrante
FONTES:
1 Os norte-americanos atualmente denominam o transtorno de personalidade múltipla de “Dissociative Identity Disorder” (desordem dissociativa de identidade-DDI)
2 Spanos, N.J.: Multiple identityenactments and multiple personalitydisorder: a sociocognitive perspective.Psychological Bulletin, 116(1), 143-165,1994
3 O termo “esquizofrenia” vem das raízes das palavras “mente dividida”, mas refere-se mais à uma fratura no funcionamento normal do cérebro do que da personalidade.
4 termo usado pelos especialistas para definir várias personalidades
5 BOURGUIGNON, E. (1989). Multiple personality, possession trance, and psychic unity of mankind. Ethos, 17, 371-384.
6 ZANGARI, W. . Estudos Psicológicos da Mediunidade: Uma breve revisão. In: 3º Seminário de Psicologia e Senso Religioso, 1999, São Paulo. Caderno do 3º Seminário de Psicologia e Senso Religioso. São Paulo: 3º Seminário de Psicologia e Senso Religioso, 1999. v. 1. p. 94-102.
7 Flournoy, Theodore . Spiritism and Psychology. New York: Harper & Brother Publishers, 1911, pg 33
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Olá. Muito interessante o artigo.
A preocupação da ciência em relação aos chamados efeitos mediúnicos não é nova. Inclusive, sabemos que nos séculos XIX e XX a disposição de cientistas para a pesquisa de tais assuntos era até maior.
O próprio surgimento da doutrina espírita aconteceu através de um professor universitário(Hippolyte Léon Denizard Rivail, posteriormente adotando o pseudônimo de Allan Kardec) que inicialmente pesquisava o fenômeno das “mesas girantes”(manifestações onde objetos flutuavam sem aparente explicação) convencido de que tais fenômenos não eram o que pareciam.
William Crookes, um famoso e respeitado cientista nas áreas da física e química, também foi responsável por pesquisas no que diz respeito aos fenômenos hoje conhecidos como mediúnicos, adotando métodos de análise empíricos. O cientista era favorável às idéias espiritualistas, segundo consta em cartas da família do mesmo. Isso parece gerar um certo descrédito quanto a pesquisas realizadas por Crookes, mesmo que os critérios por ele utilizados durante as observações tenham sido descritos metodicamente, com a aprovação de alguns outros cientistas respeitados na época(ver links). Contudo, a aprovação não foi generalizada. O inglês era membro da “Royal Society” e chegou a ser ameaçado de expulsão por pesquisar tais assuntos, dada a visão de muitos cientistas de que o espiritismo era naturalmente fraudulento.
Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Allan_Kardec
http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Crookes
Como foi citado no artigo do jornalista e professor Jorge Hessen, é tão difícil negar a existência de espíritos quanto prová-la. Pesquisas em ambos os sentidos têm sido feitas, embora muitos ignorem essas divergências, sendo elas oriundas de cientistas renomados ou não.
Segundo a etimologia, a ciência é o conhecimento (este obtido através de métodos próprios da ciência).
Se, segundo reconhecido por vários cientistas sérios, a existência de espíritos(e alguns outros assuntos muito discutidos, de origens diversas) não pode ser completamente refutada ou afirmada por métodos científicos, como pode o cientista que toma a inexistência de espíritos como verdade absoluta e incontestável considerar-se mais racional que aquele que diz o contrário, ou mesmo do que aquelas pessoas mais simples, que tomam o assunto somente pela ótica da fé?
Se não sabemos ao certo o que algo significa, devemos pesquisar com seriedade, em busca de uma verdade lógica e racional. É nessa busca que muitos se confundem. Ser sério e racional passa então a ser um forte apego aos paradigmas científicos de sua época. A ciência é, sim, a fonte humana mais confiável de conhecimento, devido aos métodos empregados para a obtenção do mesmo. Sabemos, porém, que a ciência é capaz de cometer equívocos. Já foi paradigma científico o sol girar ao redor da terra, e não o contrário. Já foi paradigma científico a terra ser plana, e não redonda(ou semi-elipsóide). Já foi paradigma científico a inexistência de de radiações eletromagnéticas, a exemplo as ondas hertzianas(rádio), tão importantes para a comunicação em massa durante boa parte da nossa história(como durante as grandes guerras).
Se pararmos e refletirmos, muitos desses erros aconteciam baseados nos nossos sentidos e na extrema confiabilidade que a eles atribuímos. Ainda hoje, se não estudássemos durante o ensino básico que a terra se movimenta ao redor do sol, seria difícil acreditar em tal fato, pois ao olhar para cima durante o dia em momentos diferentes, é o sol que parece se deslocar. Ainda hoje, os sentidos parecem querer nos fazer crer que a terra é plana, pois ao observar o horizonte, é assim que ela parece ser, dada sua dimensão. Ainda hoje, não enxergamos microrganismos, a não ser que utilizemos uma ferramenta específica para contornar a limitação da visão, o microscópio.
O que dizer da gravidade, então? A princípio, pareceria racional crer que os corpos do universo(inclusive o nosso planeta), “flutuam”, sustentados por algo que não podemos ver? Imagine-se tentando explicar a lei da gravitação, que aglutina a matéria dos corpos celestes, a um cidadão comum, ou mesmo a um filósofo/cientista, em uma época anterior ao surgimento das primeiras idéias sobre gravidade. Dada a falta de instrumentos científicos para a observação do fenômeno, quem pareceria “mais insano”, você por defender a gravidade, ou o seu parceiro de diálogo hipotético, por não te dar crédito?
A ciência evoluiu, e continua em evolução. Foi justamente quando cientistas se dispuseram a investigar assuntos que a princípio “confrontavam a verdade”, que grandes descobertas aconteceram. Esses grandes cientistas, aqueles que ganharam notoriedade, precisaram pensar de forma livre, sem barreiras paradigmáticas, para que então, ainda pela ciência, descobrissem coisas incríveis.
Pesquisemos.