Por Sérgio Aleixo
Kardec diz em seu artigo de junho de 1863 que a ideia rustenista de que “os Espíritos não teriam sido criados para encarnarem”, que “a encarnação seria tão somente o resultado de sua falta”, constitui um sistema “especioso à primeira vista”, e que “tal sistema cai pela mera consideração de que, se nenhum Espírito tivesse falido, não haveria homens na Terra, nem em outros mundos”.
Segundo o Codificador, o homem “é uma das engrenagens essenciais da criação” e, por esta razão, “Deus não podia subordinar a realização desta parte de sua obra à queda eventual de suas criaturas, a menos que contasse para tanto com um número sempre suficiente de culpados para fornecer operários aos mundos criados e por criar”. Para Kardec: “O bom-senso repele tal ideia”.
Mas a isto responderam os guias de Roustaing: “A última frase deve ser riscada”. E mesmo confessando que era “cedo” para resolver a “origem do Espírito” — em relação ao quê, aliás, Kardec já recomendara máxima cautela[1] —, os guias rustenistas exortaram a vaidade da sensitiva e do próprio jurisconsulto assim:
Utilizai-vos do que vos dizemos [sobre a origem das coisas], porquanto, ao tempo em que este vosso trabalho aparecer aos olhos de todos, os Espíritos encarnados já se acharão mais dispostos a receber o que então [quando, em O Livro dos Espíritos, foi dito que o Espírito era criado simples e ignorante], e mesmo hoje [abril de 1863], tomariam por uma monstruosidade, ou por uma tolice ridícula.[2]
Kardec reafirmou em seu artigo de junho de 1863 a doutrina de O Livro dos Espíritos e negou a tese rustenista que assegura que a reencarnação é ocasionada por castigo a Espíritos faltosos. Isto prova irrefutavelmente que não é verdadeira a propaganda centenária da F.E.B., a qual sempre deu conta de que Kardec e Roustaing só divergiam quanto à natureza do corpo de Jesus, concordando em tudo mais.
O Codificador disse em alto e bom som que o estado primitivo do Espírito não é o de “inocência inteligente e raciocinada”. Estes termos utilizados pelo mestre lionês em junho de 1863 resumem com precisão as teses “especiosas” da Revelação da Revelação que, no entanto, somente seria publicada três anos depois. Se não, vejamos:
Atingindo o ponto de preparação para entrarem no reino humano, os Espíritos se preparam, de fato, em mundos ad-hoc, para a vida espiritual consciente, independente e livre. É nesse momento que entram naquele estado de inocência e de ignorância. A vontade do soberano Senhor lhes dá a consciência de suas inocência e faculdades e, por conseguinte, de seus atos, consciência que produz o livre-arbítrio, a vida moral, a inteligência independente e capaz de raciocínio, a responsabilidade. Chegado deste modo à condição de Espírito formado, de Espírito pronto para ser humanizado se vier a falir, o Espírito se encontra num estado de inocência completa, tendo abandonado, com os seus últimos invólucros animais, os instintos oriundos das exigências da animalidade. […] Os que se conservam puros também desenvolvem atividades e inteligência, a fim de progredirem, no estado fluídico, por meio dos esforços espirituais que necessitam fazer para, da fase de inocência e de ignorância, de infância e de instrução, chegarem, sem falir, à perfeição![3]
Esta flagrante coincidência de vocábulos e a citação, no número 59 de Os Quatro Evangelhos, da absoluta negativa de Kardec à tese da “queda” evidenciam que, de alguma sorte, já em 1863, o Codificador havia tomado ciência do material que estava sendo compilado por Roustaing desde dezembro de 1861. Ponderava o saudoso confrade Gélio Lacerda da Silva, ex-presidente da Federação Espírita do Estado do Espírito Santo:
Para entender como Kardec contestou, em 1863, um assunto que Roustaing veiculou no seu livro, publicado em 1866, tudo leva a crer que Roustaing, antes do seu livro vir a público, já divulgava o seu conteúdo. Foi em abril de 1863 que os Espíritos mistificadores ditaram a Roustaing, através de Mme. Collignon, o ensino antidoutrinário de que o Espírito só será humanizado se vier a falir, conforme nota de rodapé da pág. 295, 1.º volume, 5.ª ed. de Os Quatro Evangelhos; portanto, não há dúvida de que Kardec, em junho de 1863, no seu referido artigo, se louvou na mensagem ditada a Roustaing em abril de 1863.[4]
E aduzo a isto um fato relevante. O Codificador, certa vez, publicou carta da médium Émilie Collignon encaminhando a si ditados espirituais. Acreditara a sensitiva que um desses comunicados era de um espírito que, antes, se apresentara a Kardec em substituição ao de Gérard de Codemberg. Rebatidos os argumentos da médium, o gênio lionês diz-lhe que o texto “apresenta todos os caracteres de uma comunicação apócrifa.”[5]
A seguir, Kardec publica mensagem do Espírito Bernardin à mesma sensitiva, na qual se apregoa na conta de “pensamento filosófico”, “cheio de sabedoria”, o suposto fato de que “somos uma essência criada pura, mas decaída; pertencemos a uma pátria onde tudo é pureza; culpados, fomos exilados por algum tempo, mas só por algum tempo”. Já era a doutrina rustenista da queda do espírito!
Em clara reparação, o mestre recomenda, entre parênteses, a leitura de seu aclamado artigo de janeiro de 1862, sobre a doutrina dos anjos decaídos, bem como, em sua observação final, adverte para o perigo de, em certas comunicações, espíritos não muito elevados emitirem opiniões pessoais, que refletem apenas sistemas e ideias nem sempre justos acerca dos homens e das coisas. Segundo Kardec:
Publicadas sem corretivo, essas ideias falsas apenas lançarão descrédito sobre o Espiritismo, fornecerão armas aos seus inimigos e semearão a dúvida e a incerteza entre os neófitos. Com os comentários e as explicações dados a propósito, o próprio mal por vezes se torna instrutivo. Sem isto poderiam responsabilizar a doutrina por todas as utopias enunciadas por certos Espíritos mais orgulhosos que lógicos. Se o Espiritismo pudesse ser retardado em sua marcha, não seria pelos ataques abertos de seus inimigos declarados, mas pelo zelo irrefletido dos amigos imprudentes. Não se trata, pois, de fazer coletâneas indigestas, onde tudo se acha amontoado confusamente e cujo menor inconveniente seria aborrecer o leitor; é preciso evitar com cuidado tudo quanto possa falsear a opinião sobre o Espiritismo. Ora, tudo isto exige um trabalho que justifica a demora de tais publicações.[6]
A situação não era de todo boa para a médium, que já estava recebendo a pretensa Revelação da Revelação desde de dezembro de 1861, o que se estenderia até maio de 1865,[7] e em clima, agora, quem sabe, de provável melindre, em função destes pareceres desfavoráveis de Kardec. Anote o estudioso que o mestre lionês fala, em sua observação, sobre “Espíritos mais orgulhosos que lógicos”, “zelo irrefletido dos amigos imprudentes” e “coletâneas indigestas, onde tudo se acha amontoado confusamente e cujo menor inconveniente seria aborrecer o leitor”. Não resta dúvida! O material rustenista foi enviado a Kardec já em 1862, mas o mestre logo lhe percebeu as inconsistências e perigos.
Roustaing, portanto, pôde contar com a prévia advertência do Codificador, que se dignou até poupá-lo do ridículo, dada sua distinção social, não lhe mencionando o nome naquele artigo de junho de 1863, sobre a não retrogradação dos Espíritos. Elegante, mas firme, Kardec definiu a tese rustenista da queda como “um sistema que tem algo de especioso à primeira vista”, argumentado da forma que já destaquei de início.
O jurisconsulto bordelês, portanto, deveria ter acatado o entendimento do seu “muito honrado chefe Espírita”. Foi dada a Roustaing a oportunidade de desistir daquele trabalho, todavia não o interrompeu; na certa, por orgulho ferido. Um ex-presidente da Ordem dos Advogados, membro do Tribunal Imperial de Bordéus, a ser “desacatado” por um professor lionês radicado em Paris. Não, isto não podia ser, ainda mesmo que se tratasse de um autor pedagógico aclamado.
A médium Collignon e o advogado Roustaing. Ambos em situação de evidente mágoa por não haverem obtido de Kardec o respaldo que ambicionavam para seus trabalhos mediúnicos. Combinação explosiva que gerou o primeiro cisma no movimento espírita, cujos ecos, infelizmente, se podem ouvir ainda.
Não bastassem estas advertências de Kardec, Espíritos orientadores haviam expedido alertas a respeito de um ataque de entidades mistificadoras na cidade de Bordéus. Durante a sessão geral lá ocorrida a 14 de outubro de 1861, Kardec leu, após o seu discurso, uma epístola de Erasto aos espíritas daquela localidade. [8]
Em voz um tanto mais severa, o amigo espiritual da codificação kardeciana assegurou ser necessário premunir os espíritas bordeleses contra um perigo que era seu dever lhes assinalar. Erasto avisou-os, então, do iminente assalto de uma turba de Espíritos enganadores, cuja finalidade seria fomentar a cisão, a divisão, e levar a uma ruptura por todos os títulos lamentável. Repetindo o que os próprios guias espirituais do movimento em Bordéus disseram aos espíritas daquela cidade, Erasto esclareceu que haveria dois tipos de mistificadores no ataque. Um tipo viria com combinações abertamente hostis aos ensinos dos legítimos missionários do Espírito de Verdade, este, o presidente da regeneração planetária e guia pessoal de Kardec e do Espiritismo. Outro tipo de mistificadores, porém, apresentar-se-ia com dissertações sabiamente combinadas, nas quais, graças a tiradas piedosas, insinuariam a heresia ou algum princípio dissolvente.
Roustaing tomou conhecimento da epístola por terceiros? Ou, como adeptos seus afirmam hoje sem provas, esteve presente à sessão geral? De qualquer forma, não foi por falta de mais este aviso que cometeu o erro de publicar sua pretensa Revelação da Revelação, cujos ditados começariam a aparecer já em dezembro daquele ano, dois meses depois da sessão geral, insinuando exatamente a heresia gnóstico-docetista do Jesus fluídico e o princípio dissolvente da reencarnação como resultado de uma suposta queda, espécie de falência, verdadeira retrogradação que, segundo os guias rustenistas, seria aplicável até a Espíritos com responsabilidades planetárias.[9]
Tudo se deu tal qual a predição. Foi um vaticínio de Erasto; na ocasião, mensageiro do Espírito de Verdade; este último, aliás, alguns Espíritos ligados à Igreja dos primeiros tempos já haviam identificado como Jesus, em casa do Sr. Roustaing e do Sr. Sabo, a quem Kardec recomendou o primeiro, para que se iniciasse no Espiritismo. Ao lado do mal, vê-se que Deus pusera o remédio, mas não foi usado.[10]
A nomenclatura criada por Kardec — a palavra Espiritismo, inclusive — estava em toda a suposta Revelação da Revelação, mesmo no título: “Espiritismo cristão”. Como se nunca fora dito por Kardec: “O ponto essencial é que o ensinamento dos Espíritos é eminentemente cristão: ele se apoia na imortalidade da alma, nas penas e recompensas futuras, no livre-arbítrio do homem, na moral do Cristo, e portanto não é antirreligioso”.[11]
O fato é que Roustaing, infelizmente, se apoderou do nome e dos termos de uma doutrina cuja codificação nunca lhe coube. Além disto, nem ele nem seus discípulos jamais demonstraram em quê, afinal de contas, a tese basilar de sua “escola” se distingue da antiga tese dos gnósticos docetistas. No dizer autorizado de E. Pagels, a antiga seita postulava que “Jesus não era um ser humano, e sim um ser espiritual que se adaptara à percepção humana”,[12] ou seja, conforme no Espiritismo se diz: um agênere.
Não se trata, claro, de o agênere desenvolver percepção física, mas, isto sim, de adaptar-se à percepção humana, isto é, de terceiros, a fim de que o possam notar, mesmo desencarnado; tanto assim, que os rustenistas apregoavam que Jesus não tinha “corpo material humano, sujeito à morte”, que “não podia sofrer segundo o nosso modo de entender material” e que — pasmem — “não morreu efetivamente no Gólgota”.[13] Oras! Diz o Espiritismo mui contundentemente:
[…] o Espírito que não tem corpo material não pode experimentar os sofrimentos que são o resultado da alteração da matéria, de onde também é forçoso concluir que, se Jesus sofreu materialmente, do que não se pode duvidar, é porque tinha um corpo material de natureza semelhante à dos corpos de toda a gente.[14]
Acresça-se a isso o flagrante de que, para o rustenismo, na prática, a carne humana é mesmo um efeito “do mal”; apenas a assumem os Espíritos que são punidos por faltas cometidas no “estado fluídico”. E o docetismo, segundo Pastorino, entendia exatamente isto: “[…] tudo o que é material é imperfeito e impuro, pois é obra do Princípio do Mal; como Jesus apresentara o Princípio do Bem, o Pai, não podia ter-se submetido ao Princípio do Mal e, portanto, não poderia ter tido corpo físico carnal”.[15]
De fato, neste texto de Os Quatro Evangelhos, dentre outros, pode-se constatar o horror dos guias docetistas ao corpo humano, vinculando-o à “lama”, ao “sofrimento”, à “falibilidade”; tornando-o efeito inerente à condição de “culpado”:
Maior ainda era a diferença entre esse corpo de Jesus e os vossos corpos de lama. […] não o esqueçais: todo aquele que reveste a carne e sofre, como vós, a encarnação material humana é falível. Jesus era demasiadamente puro para vestir a libré do culpado. Sua natureza espiritual era incompatível com a encarnação material, tal como a sofreis. (Vol. I, n. 14.)
Possível seria concluir então, com os guias rustenistas, que Jesus não cometeu imperfeições morais quando esteve na Terra não só porque nunca as praticara nos planos do Espírito, mas também porque não estava revestido da carne humana. A instrução 625 de O Livro dos Espíritos caducaria.
Sim, pois que valor possuiria para nós o guia e o modelo de uma perfeição que lhe foi conferida por processo evolutivo diferente daquele em que nos encontramos? Seria um guia errado, um modelo errado para uma humanidade errada, porque nada saberia de nossa vida terrestre, com a qual sua pureza sempre teria sido incompatível.
E mais: Jesus teria mentido quando disse a Nicodemos: “Falo do que sei; dou testemunho do que vi”, porquanto nada conheceria nem nada teria visto acerca da nossa experiência humana. O rustenismo, por estas e outras, é um insulto à autoridade moral e espiritual do Mestre de Nazaré, a despeito de supor exaltá-la.
Por Sérgio Aleixo
[2] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, n. 56. F.E.B, 5.ª ed., 1971, p. 295. Entre colchetes, palavras minhas.
[3] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, ns. 56 e 59.
[4] Conscientização Espírita. Do Princípio da Não Retrogradação dos Espíritos.
[5] Revista Espírita. Jun/1862. Princípio Vital das Sociedades Espíritas.
[6] Revista Espírita. Jun/1862. Ensinos e Dissertações Espíritas. O Espiritismo Filosófico. Bordeaux, 4 de abril de 1862. Médium: Sra. Collignon. Observação [de Kardec].
[7] Cf. Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 5.ª ed., 1971, pp. 64 e 66.
[8] Revista Espírita. Nov/1861. Primeira Epístola de Erasto aos Espíritas de Bordéus.
[9] Os Quatro Evangelhos. Vol. I, n. 59. F.E.B, 5.ª ed., 1971, p. 325-326. Cf. Cap. 14: Estranhezas do Ensino Rustenista.
[10] Cf. Revista Espírita. Jun/1861. Correspondência.
[11] O Livro dos Espíritos, 222.
[12] Os Evangelhos Gnósticos, IV.
[13] Os Quatro Evangelhos. Prefácio. F.E.B., 1920, p. 59.
[14] KARDEC, Allan. A Gênese, XV, 65.
[15] Sabedoria do Evangelho. Vol. 3. Jesus Anda Sobre a Água.
Retirado do blog “O Primado de Kardec” – http://oprimadodekardec.blogspot.com/2011/02/capitulo-4-as-advertencias-de-kardec.html