Miréia Carvalho
Cada um de nós é responsável pela criação do seu próprio mundo mental. Recebendo os estímulos que a vida nos oferece, Construímos por conta própria as interpretações e os juízos de valor para as pessoas, os objetos e as situações que nos afetam. Dessa forma, os acontecimentos da vida se arrastam árduos e penosos para alguns, enquanto para outros, o colorido dos dias está sempre cheio de oportunidades novas.
O equilíbrio da mente, no entanto, exige vigilância para não cairmos nas armadilhas que os pensamentos podem nos fixar. Ninguém está livre de ver seus desejos contrariados, seus objetivos não concretizados, suas ideias deturpadas; de sermos mal-interpretados em nossos mínimos gestos. Sempre achamos que o outro precipita algo em nós, que é o responsável pelas nossas dores. Todos esses acontecimentos podem criar mágoas e contrariedades que estacionam ressentimentos duradouros dentro de nós. É assim que encontramos exemplos inúmeros de “ideias fixas” que nos aprisionam num processo de auto-obsessão.
É o adolescente que se prende em conquistas mundanas e, quando não tem o sucesso esperado, se revolta e se atormenta sem parar. A esposa que se retém em pequenas expressões do marido, tentando achar pistas em que o ciúme faz ver infidelidade. O amigo, que num pequeno descuido nas gentilezas do outro, vê sinais de rejeição e em seus pensamentos há sempre uma imagem de desconfiança e controle perante o outro, achando que se afastando do amigo suas energias irão melhorar – a questão está dentro.
A palavra que uma pessoa pronunciou e que parece revelar inveja e controle. O amigo que na hora do desespero deseja ser salvo de qualquer maneira e não aceita a atitude do outro. A traição confirmada, que recusa esquecimento e não pratica o perdão. O remorso da palavra mal colocada que uma filha não soube interpretar; as comunicações verbalizadas com emoções destrutivas. O dinheiro emprestado que o parente levou com garantias que pareciam seguras. Marido e mulher, quando se separam, não imaginam que pensamentos repetitivos poderão atormentá-los por anos. A “ideia fixa” é um turbilhão de imagens vividas, palavras já pronunciadas e ofensas repetidas que teimam em ir e voltar para dentro de nós.
Na verdade, ninguém vive sem esse diálogo interior. Nossas decisões racionais são sempre precedidas dessa conversa interna, alimentada pelas nossas crenças e hábitos. O comportamento humano também resulta da disposição interna que, por força da vontade própria, nos faz tomar determinada atitude, muitas vezes sem pensar. E as ideias fixas deterioram o diálogo interior e comprometem as iniciativas que alimentam a disposição de viver. André Luiz usa a expressão “monoideia” para se referir a uma situação gravíssima de ideia fixa. O espírito fica aprisionado a um único pensamento. Um desejo de vingança, uma frustração insuportável, um sentimento de culpa ou um vazio monstruoso que força o perispírito a retrair-se, descorporificando suas características humanas, para se transformar numa espécie de esporo ovoide que se assemelha a formas primitivas de vida.
Aprendemos, também, no livro Mecanismos da Mediunidade, de André Luiz, que nos fenômenos de “ideoplastia” a energia do pensamento constrói em torno de nós o cenário que reflete o teor dos nossos desejos. Insistir com persistência numa ideia fixa de ódio ou vingança; de preocupação excessiva com a segurança econômica ou com o comportamento dos filhos; com os títulos ou as posses dos amigos; com a partilha da herança com parentes difíceis; com os vícios que alimentam os prazeres significa construir em nossa própria “psicosfera” o ambiente correspondente aos nossos desejos.
Passamos pela vida hipnotizados e/ou obsidiados, felizes ou infelizes, mergulhados no circuito mental que nós mesmos construímos. Allan Kardec, em A Gênese, ensina que o perispírito fica “impregnado” do pensamento que transmite. É por isso que a aparência de cada um de nós revela o conteúdo das ideias que alimentam nossos desejos e pulsões. A alegria aumenta o brilho dos olhos e a raiva interna envelhece precocemente. O desânimo nos arqueia os ombros, e fazer o bem eterniza a juventude. Na psicopatologia, a ideia fixa é um dos maiores tormentos que o sofrimento humano pode conhecer. Ela nos dá a sensação de que vão perdurar sem alívio, pela eternidade, as dores da vida.
Em Os Mensageiros, de André Luiz, há um “pronto-socorro” de almas endividadas, em que espíritos estão sofrendo por séculos, num processo “anestesiante” em que as ideias fixas se congelaram no tempo. O esquizofrênico internado na clínica de psiquiatria convive com o martírio perturbador de ideias distorcidas. Tudo se refere a ele – nas ideias de referência; tudo está contra ele – nas ideias persecutórias, e tudo está ao seu alcance – nas ideias delirantes. No entanto, a consciência do seu distúrbio o poupa do juízo e, talvez, ele nem saiba da extensão do seu destino. Não se pode dizer o mesmo de quem cometeu um crime ou o suicídio.
Em Memórias de um Suicida, Camilo Castelo Branco revela que nada deste mundo apaga a ideia da arma que disparou no suicídio, da locomotiva que esmigalhou os ossos ou do vazio da queda no salto para a morte. Nenhuma mãe esquecerá, também, o dia em que abandonou o filho. O criminoso estará sempre preso ao cenário da culpa. O infiel sentirá a necessidade de resgatar a confiança perdida. O falsificador não fugirá da verdade que ele mesmo vai revelar, e o ladrão terá que devolver cada centavo do que se apropriou. Nem o amigo que não foi fiel diante da amizade oferecida pelo coração. Até que o pensamento de cada um gere novos rumos e as ideias possam fluir, nenhuma consciência viverá em paz.
A idéia fixa reflete nossa própria insanidade. A Misericórdia Divina, porém, nos concedeu a bênção da inteligência e da razão, que nos permite buscar novas ideias, reciclando os nossos sentimentos e atitudes. A religiosidade nos ajudará a vencer as intempéries através de muita oração, compreensão e entendimento sobre as nossas vicissitudes perante nossa encarnação, sendo uma ferramenta da evolução. Vale salientar que o outro chega às nossas vidas para o reencontro, conciliação e compaixão.
A vida é uma experiência que não poupará ninguém, encarnados nem desencarnados; por isso, devemos não cultivar o remorso, não conservar a culpa ou alimentar a desesperança. “A vida é muito curta para ser pequena”; esforcemo-nos por elevar os nossos pensamentos, buscando a união, a fraternidade e o amor que devem existir nas relações, sem julgamento nem rancores. A Lei de Deus está em nossas consciências. “Conhece-te ou devora-te”.
Miréia Carvalho – psicóloga e professora universitária. Presidente da Sociedade de Educação Espírita da Bahia – SEEB.
Publicado simultaneamente em www.encontrofraterno.com.br