No início dos idos anos 90, quando ainda cursava faculdade e nem conhecia o Espiritismo, um professor que autodenominava “ateu” – profitente de crença nenhuma – tinha uma forma diferente de leccionar, que me deixou importantes lições de vida – e creio que também a outros colegas que procuraram escutá-lo atentamente, com “ouvidos de ouvri”. Foram ocorrências para mim tão evidentes, que muitas me faziam assim reflectir: E ele ainda se diz ateu!
Sua atitude em sala era tão diferente da dos demais membros do corpo docente, que ele era também detestado por alguns estudantes (que não o compreendiam), como admirado por outros.
Uma das cenas de que me recordo dizia respeito à sua forma de avaliar os estudantes. Ele assim se exprimia, no início do semestre: “Não costumo esperar respostas prontas nas avaliações, deixo a cada um a liberdade de registrar o que bem entender. Se desejarem registrar algo de cunho pessoal, que o façam. Se desejarem me criticar, estejam também à vontade. Jamais reprovei alguém pelo que tenha registrado nas avaliações”. E contou que, certa vez, um estudante fez duras críticas à sua forma de leccionar. Resultado: conferiu-lhe nota 10. Depois, o estudante, profundamente constrangido e arrependido, procurou-o para se desculpar. Ele não esperava por desculpas, pois aquilo que estava registrado exprimia o pensamento do estudante. Disse-lhe que considerou que ele merecia tal nota pela sinceridade com que se expressou e pela coragem em registrar tudo aquilo, sem temer ser reprovado na disciplina. E completou: “Temos que respeitar a opinião dos outros, mesmo que divirja das nossas”. Conclusão: aquele estudante tornou-se um grande admirador do nosso professor e, provavelmente, um admirador da sinceridade.
Confesso que eu prestava mais atenção nas frases que traduziam sua conduta –na minha interpretação, cristã – do que no conteúdo das aulas que ele tinha a apresentar. A disciplina pela qual respondia creio que era Metodologia de Ensino, não tenho a certeza (afinal, depois de tantos anos…). Lembro-me, entretanto, de que sua forma de ensinar nos deixava livres para pensar e expressar nossos pensamentos. À sua maneira, ensinava o respeito que devemos ter ao pensamento e opiniões dos demais, mesmo que contrários aos nossos. Ele não só falava, agia assim, e isso é o que verdadeiramente deixa lições.
Uma frase dita por ele, em sala de aula, sempre trago na memória e no exercício cristão, dentro e fora da Casa Espírita (quando mais devemos nos expressar como se estivéssemos nas tarefas espiritistas). Não me recordo do contexto, mas isso não tem importância não era o que deveria ficar, e sim a conclusão que se traduziria em lição a me acompanhar nas ocorrências cotidianas: “A coisa mais importante do mundo é você escutar alguém!”. Quando ouvi essa frase, disso lembro-me bem, fiquei a reflectir (creio mesmo que sai da sala, pois viajei pelo pensamento): se e quantas vezes eu havia posto em prática aquela frase, que me chegava com um grande ensinamento de vida, nas repercussões ao colocar à disposição do outro nossa disposição para ouvir. Fiquei dias refeletindo sobre tão profundo ensinamento. E, quase 20 anos depois, percebo que continuo a meditar sobre tal lição. Mais que isso, hoje vigio-me, para avaliar-me sobre o cumprimento de tão luminoso ensinamento.
Agora, quando sei que dei um passo importante na direcção de permitir a entrada do ensinamento espírita em mim (digo que passamos por dois momentos, após o contato com a Doutrina Espírita: o primeiro, quando “chegamos à doutrina”; o segundo, quando a Doutrina penetra em nós), trago sempre a imagem e mensagem do professor que se dizia ateu, mas que apresentava atitudes verdadeiramente cristãs. Naquele momento, sem o saber, ele me apresentava o grande trabalho desenvolvido no atendimento fraterno é escutar alguém. Atender fraternalmente, no nosso entender, é atitude que se deve traduzir em todas as actividades de nossa vida (de Espírito imortal), no contato com os encarnados e os desencarnados.
Jesus, muitas das vezes, antes de falar, parava para escutar. Fazia mais, bem o sabemos: auscultava. E se não nos dispusermos a ouvir e a ir além, mergulhar profundamente nas dores éque se nos apresentam, como poderemos curar a nós mesmos? Pois´e facultando ao outro a liberdade de expressar seus conflitos aconselhando-o (na linha do que muitas vezes nós mesmo ainda não conseguimos empreender), que abriremos espaços internos para que os mecanismos do Amparo Celeste, que são complexos e profundos, façam também em nós, no tempo que o Altíssimo entender esteja ao nosso alcance, aquilo que somente o tempo, a maturidade e a vontade mobilizada para o bem são capazes de nos proporcionar: a verdadeira cura.
E se ainda não nos dispusermos a escutar, lembremos quão importantes foram aqueles que pararam para nos ouvir nos momentos de grande conflito interior. Escutando alguém, poderemos dissuadi-lo da idéia de suicídio, poderemos devolver-lhes a esperança, proporcionar-lhe um pouco de paz (mesmo quando ainda não a tenhamos conquistado para nós mesmos), poderemos transformar uma vida. Assim Jesus fazia quando parava para escutar (e auscultar) alguém.
Meu professor? Não sei se está encarnado. Mas onde quer que esteja (aqui ou no plano espiritual), desejo que saiba e sinta que pelo menos uma estudante tem se esforçado por cumprir uma das suas preciosas lições deixadas nas entrelinhas.
A atitude de meu professor se chama caridade.
Sandra Batista
Fonte: Reformador – janeiro 2012