(In: O Espírito das Revelações, Lachâtre, 2001.)
Por Sérgio Fernandes Aleixo
“(…) discutiremos, mas não disputaremos. (…) há polêmica e polêmica; e há uma diante da qual não recuaremos jamais, que é a discussão séria dos princípios que professamos”. Allan Kardec (Revista espírita. Janeiro de 1858. Introdução. Novembro de 1858. Polêmica espírita.)
Observação: Esta matéria, publicada no livro, de nossa autoria, O ESPÍRITO DAS REVELAÇÕES (Lachâtre, 2001), constitui uma resposta a um artigo que na imprensa espírita foi certa vez publicado. Pela extensão deste nosso material, aquele órgão de comunicação julgou por bem publicá-lo apenas em parte. Como nosso objetivo é sempre tão-só esclarecer, e convicto de que respondemos aqui a muitas indagações acerca do assunto, entregamo-lo ao leitor. Não identificamos o articulista a que nos referimos, bem como o periódico. Nosso intuito é apenas a produção de conhecimento espírita, e nada mais.
Qualquer estudo reclama perseverança, máxime no âmbito da doutrina espírita. Não há razões para hesitarmos no que respeita à individualidade e à identidade do Espírito de Verdade. A obra de Kardec é a fonte impoluta a que devemos recorrer para dirimir quaisquer dúvidas em matéria de espiritismo. Assim também deve ser neste caso.
Necessário considerarmos primeiramente que o Espírito de Verdade não é uma falange. Esse conceito, aliás, não é da codificação. Para Kardec, em definitiva, o Espírito de Verdade é “inspirador” e “presidente” do “ensino” de uma “doutrina soberanamente consoladora”, personificada no Evangelho segundo João sob o nome de “Consolador”. (Cf. A gênese, XVII:39 e 40. O evangelho segundo o espiritismo, VI:4.)
Portanto, trata-se de um espírito, não de vários. A tal respeito, o mestre de Lyon assim se exprimiu: “A qualificação de Espírito de Verdade não pertence senão a um e pode ser considerada como nome próprio; ela é especificada no Evangelho. De resto, esse espírito se comunica raramente, e somente em circunstâncias especiais; deve-se manter em guarda contra aqueles que se apoderam indevidamente desse título”. (Revista espírita. Julho de 1866. Qualificação de santo aplicada a certos espíritos. IDE, Tomo IX, p. 222.)
O Espírito de Verdade, ao demais, assina O livro dos espíritos juntamente com outras individualidades espirituais; fosse ele o nome de uma coletividade de espíritos e tornaria inúteis as demais assinaturas. (Cf. Exposição Preliminar, ou Prolegômenos.)
Superada esta questão da individualidade do Espírito de Verdade, elucidemos o problema crucial de sua identidade.
Em 25 de março de 1856, o guia espiritual do mestre lionês disse-lhe: “Para ti chamar-me-ei a Verdade”. (Cf. Obras póstumas.) Evidente, para nós, que é Jesus, o único espírito que se pode declarar dessa forma sem prejuízo à sua honestidade. (Cf. João 14:6.) Mas, a fim de confirmarmos isso em termos rigorosamente kardecianos, basta uma consulta ao item 48 de O livro dos médiuns, no qual, ao refutar o sistema unispírita, o codificador trata Jesus por “o Espírito da Verdade”, “o Espírito do bem por excelência”, “santo entre todos”. Este texto não permite ambigüidades. É inapelável. Não podemos desmenti-lo sem desmentir o próprio Allan Kardec. Poderíamos encerrar aqui este assunto. O Espírito de Verdade é Jesus!
Porém, na mesma obra, devemos perscrutar ainda a nota do mestre lionês à dissertação IX do capítulo XXXI. Tal dissertação, que em O livro dos médiuns aparece assinada por “Jesus de Nazaré”, figura em O evangelho segundo o espiritismo (VI:5) como de autoria de “o Espírito de Verdade”, o que constitui prova inconcussa de que ambos são a mesma individualidade.
Diz Kardec que o espiritismo “é obra do Cristo, que preside, conforme também o anunciou, à regeneração que se opera e prepara o reino de Deus na Terra”. (O evangelho segundo o espiritismo, I:7.) Ao mesmo tempo, afirma também o codificador, indistintamente, que “o Espírito de Verdade preside ao grande movimento da regeneração”, e que esse espírito “é o verdadeiro Consolador” (A gênese, I:42), decerto, o mesmo “Cristo Consolador” do capítulo VI de O evangelho segundo espiritismo.
Se ainda hesitarmos, é só conferirmos o que é dito ao mestre quando escreve, em Ségur, O evangelho segundo o espiritismo: “Acaba a tua obra e conta com a proteção do teu guia, guia de todos nós (…) Conta conosco e conta sobretudo com a grande alma do mestre de todos nós, que te protege de modo muito particular”. (Obras póstumas, 9 de agosto de 1863.)
Além destas provas, há outras ainda.
Na Revista espírita de outubro de 1861, o prudentíssimo Erasto revela em sua epístola aos espíritas lioneses: “(…) o Espírito de Verdade, nosso mestre bem-amado (…)”. (IDE, Tomo IV, p. 303.) Já na Revista espírita de janeiro de 1864, o sábio Hahnemann afirma: “(…) o Espírito de Verdade, que dirige este Globo (…)”. (Um caso de possessão. Senhorita Julie. IDE, Tomo VII, p. 16.)
Em maio de 1864, o Espírito de Verdade comunicou-se em termos reveladores, dizendo, entre outras coisas, o seguinte: “Há dezoito séculos eu vim, por ordem de meu Pai (…). Hoje, por ordem do Eterno, os bons espíritos, seus mensageiros, vêm sobre todos os pontos do globo fazer ouvir a trombeta retumbante. Escutai as suas vozes; são aquelas destinadas a vos mostrar o caminho que conduz aos pés do Pai celeste. Sede dóceis aos seus ensinos; os tempos preditos são chegados; todas as profecias serão cumpridas (…)”. (Revista espírita. Dezembro de 1864. Comunicação espírita. A propósito de A Imitação do Evangelho. IDE, Tomo VII, p. 399.)
Em sua nota à citada comunicação, Kardec mostra a circunspecção, a cautela e a modéstia que sempre o caracterizaram, ressaltando, porém, que, descartadas as evidentemente apócrifas, em muitas comunicações que trazem o nome Espírito de Verdade, ou o nome Jesus, “(…) embora obtidas por médiuns diferentes e em épocas diferentes, nota-se entre elas uma analogia evidente de tom, de estilo e de pensamentos que acusa uma fonte única.” (Ibidem, p. 400.)
Numa comunicação de 9 de abril de 1856, o guia espiritual de Kardec dizia ao então futuro codificador do espiritismo, entre outras coisas: “Nesse mundo, a vida material é muito de ter-se em conta; não te ajudar a viver seria não te amar”. Em nota que bem mais tarde apôs a essa comunicação, o próprio mestre lionês demonstra ter vindo a saber quem era esse guia, e demonstra ainda ter-se surpreendido bastante com isso: “A proteção desse espírito, cuja superioridade eu então estava longe de imaginar, jamais, de fato, me faltou”. (Obras póstumas. 25 de março de 1856.)
Ora! Em termos rigorosamente kardecianos está dirimida esta dúvida quanto à individualidade e à identidade do Espírito de Verdade. Ele é único! Ele é Jesus! A menos que não confiemos em Kardec e nos espíritos da codificação.
Resta então apenas o problema da exegese escriturística, e esse é outro departamento, mas que também pode ser elucidado pela aplicação adequada do conhecimento espírita.
Quando Jesus disse que enviaria o Consolador, o Espírito de Verdade, se referiu simbolicamente à doutrina, nada obstante a, por outro lado, afirmar: “A vós convém que eu vá, porque, se eu não for, não virá a vós o paráclito (…) Não vos deixarei órfãos, voltarei a vós outros (…) Tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora (…) Estas cousas vos tenho dito por meio de figuras; vem a hora em que não vos falarei por meio de comparações, mas vos falarei claramente a respeito do Pai”. (João 14:18; 16:7,12 e 25.) Isto já nos convida ao entendimento de que o próprio Jesus se encarregaria, mais tarde, de ensinar espiritualmente aquilo que não pudera quando encarnado.
Não há contradição. Há simbologia. Não nos informou João Evangelista que, pela compreensão do espiritismo, explicados, os “erros” se tornariam verdades? (Cf. O evangelho segundo o espiritismo, VIII:18.)
Por ser o Espírito de Verdade o próprio Jesus e por esse fato constituir o cumprimento das profecias acima citadas é que o mestre lionês assegurou, convicto: “Jesus reservou para si a completação ulterior de seus ensinamentos”. (A gênese, XVII:37.) Claro que o Cristo não estava sozinho, fez-se acompanhar de numerosa coletividade superior, a qual, por ter o seu comando direto, foi chamada “falange do Espírito de Verdade”, ou “do Consolador”. O Espírito de Verdade (segundo Kardec, “o verdadeiro Consolador”) não é, portanto, a falange em si, mas o comandante dela, o que é muito diferente.
Se o Espírito de Verdade fosse uma coletividade de espíritos, razão não haveria para que a promessa de sua vinda não houvesse sido cumprida no dia de pentecostes, como afirmam as igrejas ter acontecido, pois o que ocorreu naquele dia foi justamente um encontro mediúnico entre o apostolado cristão primitivo e uma excelsa coletividade de espíritos. (Cf. Atos, 2.)
Allan Kardec, porém, diz em A gênese (cf. XVII:42) que, no pentecostes, não se cumpriu o que Jesus profetizara do Consolador. E por quê? Porque as características declinadas pelo Cristo não se referiam propriamente a uma coletividade de espíritos, mas a uma doutrina; a chefia dessa coletividade e a responsabilidade maior pelo advento de tal doutrina é do Espírito de Verdade: inapelavelmente, Jesus. Kardec e os espíritos superiores é que o asseguram.
Ora! Se a codificação a define tão claramente, não podemos considerar esta verdade como simples conjectura. Ou será que estamos nos esforçando em cumprir aquela profecia do Espírito de Verdade, a qual adverte para o fato de que as melhores instruções de Kardec seriam desprezadas e falseadas? (Cf. Obras póstumas, 12 de junho de 1856.)
Ouçamos, por fim, o que nos diz o instrutor espiritual Alexandre, em Missionários da luz, obra ditada por André Luiz ao médium Francisco Cândido Xavier: “Por que audácia incompreensível imaginais a realização sublime sem vos afeiçoardes ao Espírito de Verdade, que é o próprio Senhor?”. (Cf. 21ª ed., FEB, 1988, p. 99). Alguma dúvida, leitor amigo?
No que tange às objeções ao fato de ser Jesus o Espírito de Verdade, nós as respeitamos enquanto expressão das possibilidades de estudo e compreensão daqueles que as utilizam… Entretanto, repetimos a frase com que iniciamos este artigo: Qualquer estudo reclama perseverança, máxime no âmbito da doutrina espírita.
Fonte: Revista Internacional de – Março/2000