Depois de aproximadamente 40 anos do in\u00edcio da era crist\u00e3, F\u00edlon, um eminente fil\u00f3sofo judeu, que defendeu os interesses judaicos junto \u00e0 corte de Nero, escreveu sobre os h\u00e1bitos de vida e o pensamento do que teriam sido as primeiras comunidades crist\u00e3s.<\/em><\/p>\n Eles viviam no Egito, nas imedia\u00e7\u00f5es de Alexandria, uma das cidades mais importantes dos primeiros tempos do movimento crist\u00e3o, bem antes da constitui\u00e7\u00e3o, em Roma, de uma religi\u00e3o dita crist\u00e3, com pretens\u00f5es a ser universal.<\/p>\n Nessa comunidade, homens e mulheres acorriam para se preparar para uma vida mais verdadeira, mais elevada, sendo tratados da mesma forma, embora houvesse um muro que os separasse. Todos ouviam as mesmas palestras, podiam estudar os mesmos textos e procuravam ter os mesmos h\u00e1bitos de comportamento. Para os padr\u00f5es judaicos de ent\u00e3o, isso era algo impens\u00e1vel, mesmo porque praticamente at\u00e9 o s\u00e9culo 20, as mulheres n\u00e3o eram admitidas, conjuntamente com os homens, ao estudo e discuss\u00e3o dos temas mais pungentes da vida, recebendo educa\u00e7\u00e3o exclusivamente no lar e para o lar.<\/p>\n Esses terapeutas, como se chamavam, tamb\u00e9m liam textos judeus, al\u00e9m de outros que F\u00edlon n\u00e3o reconheceu, pois n\u00e3o os conhecia na verdade \u2013 tudo indica fossem textos crist\u00e3os. Buscavam ser comedidos no falar, no comer e no beber. Prezavam as virtudes do cora\u00e7\u00e3o e da mente. Contudo, o que mais os distinguia era a preocupa\u00e7\u00e3o com o ser, para o qu\u00ea isolavam-se na comunidade para melhor aprimorarem-se nesse mister.<\/p>\n E o que seria cuidar do ser? Cuidar de si, do pr\u00f3prio corpo, dos outros? Seriam eles devotados a alguma forma de medicina alternativa da \u00e9poca? Sim e n\u00e3o. Se por medicina entendermos o cuidado com a sa\u00fade do corpo, buscando nele mesmo a origem das doen\u00e7as, os terapeutas de Alexandria n\u00e3o eram m\u00e9dicos, enfermeiros. Entretanto, se por medicina entendermos a preocupa\u00e7\u00e3o com a sa\u00fade do corpo, entendendo-a como efeito da sa\u00fade da alma, ent\u00e3o eles exerciam sim uma forma de medicina, identificando a origem dos males f\u00edsicos nos h\u00e1bitos de comportamento e valores morais. Viam as doen\u00e7as org\u00e2nicas como consequ\u00eancias dos desequil\u00edbrios da alma. A ira, o \u00f3dio, a inveja, a cobi\u00e7a, as fobias, a tristeza, a desorienta\u00e7\u00e3o do desejo, o apego ao prazer, a inconforma\u00e7\u00e3o e a ignor\u00e2ncia, entre outras coisas, eram tidos como a origem das doen\u00e7as em geral, procurando-se orientar o comportamento, tendo em vista a manuten\u00e7\u00e3o da sa\u00fade integral, de corpo e de alma.<\/p>\n O que distinguia ainda mais os terapeutas era o exerc\u00edcio de vida que continuamente buscavam. Adestravam-se para ver em cada um, fosse quem fosse, uma manifesta\u00e7\u00e3o do Ser, a presen\u00e7a divina, em tantas formas de exist\u00eancia. Esmeravam-se em procurar as necessidades relativas, n\u00e3o propriamente \u00e0 personalidade de cada um, mas ao que de fato necessitava o ser universal para se desenvolver plenamente.<\/p>\n Outros dados curiosos podem ser encontrados pelo leitor na tradu\u00e7\u00e3o que Jeans-Yves Leloup, fez da obra de F\u00edlon (Editora Vozes), cujo t\u00edtulo em portugu\u00eas \u00e9 Cuidar do ser.<\/p>\n Os terapeutas no Evangelho<\/p>\n Na introdu\u00e7\u00e3o de O evangelho segundo o espiritismo (1863), no item Not\u00edcias Hist\u00f3ricas, Kardec destaca que para bem compreender certas passagens dos evangelhos \u00e9 necess\u00e1rio conhecer o valor de muitas palavras que s\u00e3o frequentemente empregadas nos textos, e que caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia daquela \u00e9poca. \u00c9 assim que l\u00e1 est\u00e3o os coment\u00e1rios sobre os samaritanos, os nazarenos, os publicanos, os peageiros, os fariseus, os escribas, os saduceus, os ess\u00eanios e os terapeutas. Esclarece Kardec:<\/p>\n Terapeutas (do grego therapeutai, formado de therapeuein, servir, cuidar, isto \u00e9: servidores de Deus, ou curadores). Eram sect\u00e1rios judeus contempor\u00e2neos do Cristo, estabelecidos principalmente em Alexandria, no Egito. Tinham muita rela\u00e7\u00e3o com os ess\u00eanios, cujos princ\u00edpios adotavam, aplicando-se, como esses \u00faltimos, \u00e0 pr\u00e1tica de todas as virtudes. Eram de extrema frugalidade na alimenta\u00e7\u00e3o. Tamb\u00e9m celibat\u00e1rios, votados \u00e0 contempla\u00e7\u00e3o e vivendo vida solit\u00e1ria, constitu\u00edam uma verdadeira ordem religiosa. F\u00edlon, fil\u00f3sofo judeu plat\u00f4nico, de Alexandria, foi o primeiro a falar dos terapeutas, considerando-os uma seita do juda\u00edsmo. Eus\u00e9bio, S. Jer\u00f4nimo e outros Pais da Igreja pensam que eles eram crist\u00e3os. Fossem tais, ou fossem judeus, o que \u00e9 evidente \u00e9 que, do mesmo modo que os ess\u00eanios, eles representam o tra\u00e7o de uni\u00e3o entre o Juda\u00edsmo e o Cristianismo.<\/p>\n Ricardo Madeira tem forma\u00e7\u00e3o em Semi\u00f3tica e Lingu\u00edstica Geral e doutorado em Ci\u00eancias da Comunica\u00e7\u00e3o pela ECA-USP.<\/em><\/p>\n